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Ouvindo a voz dos Mapuche!

Posted by Parcos Maulo Marcadores:

Falar sobre os Mapuche não é fácil. Não temos muitos estudos publicados sobre as lutas desse povo, especialmente no Brasil. Já faz algum tempo que estamos buscando conhecer mais sobre o assunto e, há alguns meses atrás, descobrimos um livro chamado Sonhos e Lutas dos Mapuche do Chile da pesquisadora mapuche Elba Soto. Ela é uma socióloga nascida entre os mapuche, no Chile, e que veio estudar no Brasil. Elba Soto fez seu doutorado na Universidade de São Paulo. As pesquisas que ela realizou resultaram no livro publicado em 2007.

Conseguimos encontrar o livro de Elba Soto na biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em Goiânia. Gostamos muito da análise da autora. Ela utiliza uma linguagem muito acessível e explica bem a situação dos mapuche desde o tempo da colonização espanhola. Outro ponto interessante sobre o livro é que ele traz muitas entrevistas realizadas com vários mapuche. Para fazer com que sua pesquisa tivesse profundidade, Elba Soto viajou para o Chile e visitou várias pessoas. Vamos apresentar abaixo algumas passagens retiradas do livro de Elba Soto que trazem relatos diretos dos próprios Mapuche. A autora não quis publicar o nome dos entrevistados para preservá-los de qualquer perseguição por parte do Estado do Chile e da polícia. Lembre-se que a entrevista é feita na forma de uma conversa normal do dia-a-dia e por isso o texto talvez pareça confuso.

Algumas palavras estão no idioma mapuche, o mapudungun. A palavra WINKA, por exemplo, significa “estrangeiro”, “forasteiro”. Você encontra um pequeno glossário explicando o significado de algumas palavras em mapudungun no final da História em Quadrinhos.

Começamos com um relato de infância de uma senhora mapuche:

Ah! Sim pois, eu quando fui, aqui, já fui menina já, pequenina, já fui dando-me conta, aqui onde morávamos nós, da pobreza toda (...) a pezinhos descalços andávamos, não tínhamos sapato nada, com uma telinha de vestido que minha mãe nos punha, não mais puh!, nós fomos sumamente pobre, pobre e fomos muito enganados pelos winka, fomos muito... sempre o winka a nós, nos iam humilhando (...) os mapuche não tínhamos valor [para os winka], os mapuche que somos éramos pobres. Olhavam-nos [aos mapuche] como igual que olhassem um bicho, para falar mais claro, [quando] íamos por aí, com os winka, com os inquilinos. Eu como já fui criancinha, depois já entrei a trabalhar com os inquilinos, eu aí, sempre me lembro, chegavam os mapuche [onde os winka]. Aí vem a china! Essa era a palavra que nos tinham. Aí vem a china! Já virá morta de fome a china! Por isso vem! E a mim me doía isso. Por que estava eu aí mesmo trabalhando? Dizia eu. Ver o que é, dizia eu! Estes winka porque têm, lhe tratam como cachorro a gente, tratam-lhe assim! E me sentia mal eu! Chegavam as senhoras assim, claro, mortas de fome, para falar mais claro. Sim, antes éramos pobres puh! Não achávamos com que trabalhar, não haviam bois, não havia nada! Vivíamos por aí, quase de esmola com os winka não mais, puh! Sempre humilhados pelos chilenos e não lhe tinham respeito ao mapuche! Sim, o mapuche, éramos, olhavam-lhes igual como ver, olhar um bicho, não mais. Assim que de por aí já nos criamos e como antes saíam muitas, muitas machas íamos ao mar, aí na praia de Quidico, pra baixo, até Lleu-Lleu abaixo. Sim, estavam as gentes enrachados puh!, tirando machas (...) levavam-nos por aí, por Purén a vendê-lo (...) já depois fomos meninas, saíamos a trabalhar, levávamos o machado no ombro por aí, cortando chocho, nós trabalhávamos igual como homem, eu sabia mais trabalho de homem antes da cozinha puh!, sofremos muito nós, sumamente. E tinha minha avó (...) arrancaram-me a terra, filha, dizia-me, os winka me enganaram, minha terra a deixei jogada, em Quidico, dizia-me. Aí tenho terra, mas eu não vendi meu terreno, dizia. Arrancaram de mim os winka, por um almude de trigo. Arrancaram-lhe a terra à minha avó! Isso (...) reclamem a terra, dizia. Que, agora nós vamos reclamar essa terra! Se o winka já a tomou já, puh! Assim que aí ficou essa terra toda, essa foi a pobreza maior que nós tivemos.  

A seguir mostramos uma história de como um senhor mapuche foi forçado a esquecer a sua língua (o mapudungun) na escola:

(...) o professor nos tirou o idioma, que nós falávamos como nos ensinava o pai. A língua mapuche! Proibiu-a! (...) estava eu como no segundo ano, aí falávamos ainda. Já depois não segui [falando]. Veio uma lei, parece, nenhum professor admitia [às crianças] falar em língua mapuche. Dizia-nos [o professor], porque às vezes falaram-me eles [os professores], que nós os enganávamos (...) podíamos fazer-lhes armadilhas, uma coisa dessas, e também porque não podem ler corretamente. Já, e quem falava mapuche (...) ajoelhavam-no com ervilhas, trigo, esse tipo de coisa, nos joelhos, com os joelhos nus. Quem fazia alguma coisa, desobedecia isso, algo assim... E que vamos fazer? E nós, o medo... que víamos outro colega ajoelhado. Também não! Pronto! (...) temos que falar em espanhol, não em mapuche. Proibido. O professor era Luciano Mora Lagos (...) depois não pudemos falar mais porque proibiu puh! Chegavam, golpeavam-nos e nós puh! Depois obrigados a aprender, aprender, aprender em espanhol (...)
Aí me lembro eu da escola, quando o professor nos disse: não queremos língua mapuche! [na escola, eles]. Então aí é onde me incomoda a mim. Digo (...) cortaram-nos e, no mais nosso, cortaram-nos! Então, aí onde nós devíamos ter aprendido para saber falar corretamente, igual como se sabe o espanhol. Mas, não nos deixaram! [eles]. Então, aí é onde eu me sinto incomodado puh! (...).

O texto seguinte nos fala de como os mapuche foram expulsos das suas terras e de como eles se colocam hoje, quando fala das tentativas de recuperação dessas terras.

(...) o winka se fez dono [da terra] expulsando-os, expulsando aos mapuche e quem não saía, [os winka] o matavam, [os winka] queimavam-lhe sua ruka, [os winka] faziam-se donos dos animais que tinham os mapuche. E nós como mapuche, a que winka temos matado quando fazemos conflito? Quanto tratamos de recuperação, falamos muitas vezes, dizem: Os mapuche estão metidos numa fazenda! Tomaram a terra! Não puh! Não é tomada de terra, é recuperação (...)

Vejamos um texto que fala de como os mapuche entendem os projetos do governo chileno voltados para a “pacificação”:

Não lhe vou agradecer jamais ao projeto [ao governo], porque neste Estado, neste regime que estamos vivendo, o projeto ou os projetos, não só da Area de Desenvolvimento do Lleu-Lleu, senão dos projetos que nos estão dando a nível, como mapuche, é nada mais manter o mapuche tranquilo, conformado e que esteja muito à espera dos projetos e com isso deixar passar um processo político, seis anos mais, seis anos mais, seis anos mais, (...) se vai reduzindo [o mapuche], muito tranquilo (...) com uma grande tranquilidade e (...) não lhe serve os projetos aos mapuche (...) uma má intenção, não é uma boa intenção para o povo mapuche.   

Sobre a exploração irracional da natureza realizada pelas indústrias:

Há tempos já que secou a água por aqui, mas todos dizem que pela euca [refere-se ao eucalipto plantado pelas empresas] (...) sim, agora pura euca, quando havia isso antes? (...) mas agora, para o lado que vai, puh! (...). Assim com o tempo, nem água vamos ter, dizem que a euca está chupando a água.
O caminho [a estrada] (...) tem sido nada mais que para as transnacionais, sabemos que aqui estamos invadidos de bosques de pinhos e de eucalipto, e quem são os que fazem os caminhos, somos os trabalhadores para as empresas florestais transnacionais Mininco e Volterra, então para nós, estamos [sendo] usados, mais nada.

Para terminar, um relato de um avô mapuche que se lembra da vida dos seus próprios avós (ou seja, há muito tempo atrás):

Sim, sim, lembro (...) conheci os avós (...) eles nos conversavam a nós, éramos criancinhas mas escutávamos sua conversa, era muito lastimoso, claro que criança... nós os escutávamos nada mais. Mas (...) quando fizemos mais ou menos 20 anos pra cima, como que percebemos, percebemos, de ver [o] que eles sofreram. Trabalhavam nas fazendas de [por] aqui, eles [trabalhavam] em Tranaquepe, fundo Tranaquepe dos Esperguer (...) às cinco, quatro da manhã, já eles iam para o trabalho, a trabalhar, saíam da sua casa com estrelas, nós éramos criancinhas (...) nós gostávamos de dormir, de dormir, porque o menino é assim, puh! Era incômodo quando eles iam empeçar a levantar-se, a fazer fogo (...) e se iam pra trabalhar. Lá tinham que estar no mínimo já às seis da manhã. E daí com estrelas já os repartiam ao seu trabalho. E isso eles nos conversavam a nós e por isso nós sabemos e também alcançamos a conhecer um pouquinho disso... e às vezes aí eles acumulavam doenças, enfermaram-se, puh! Pelo gelo. A alguns os mandavam [a trabalhar] ao canal, a canalizar puh! Dentro da água. E como canalizavam? Com sandálias de borracha, pra não pisar espinhas ou algo assim. Mas, dizem que não aguentavam [o frio] por aí, faziam fogo, saíam. Mas, cuidado que os flagrassem, o mordomo (como lhe diziam antes, à pessoa que dirigia o trabalho). Se o flagrava aí ou descansando. [Fora!] Já! Senhor! E senão o castigavam pisando-o de cavalo. Isso nos contavam os avós a nós (...) aí choravam puh! O que sofremos diziam, somos discriminados diziam os velhinhos. Quando será o dia, diziam, que deixemos de sofrer? (...) 

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