RSS Feed

Um pouco de história Mapuche

Posted by Parcos Maulo Marcadores:




Os Mapuche


Texto adaptado da dissertação de mestrado e da tese de doutorado de Segismundo Siqueira Filho e Elba Soto, respectivamente: "A Resistência Mapuche ao Processo de Colonização Espanhol nos Séculos XVI e XVII" (2009) e “Sonhos e Lutas dos Mapuche do Chile” (2007).

  1. A geografia chilena sempre exerceu grande influência sobre a vida, a configuração e a organização das diversas etnias que ali se instalaram durante os milhares de anos que antecederam ao encontro com os europeus. O território é formado por uma estreita e longa faixa de terra compreendida entre a cordilheira dos Andes e o oceano Pacífico. Devido a sua extensão em latitude, o Chile apresenta todos os climas característicos das regiões ocidentais dos continentes, com exceção dos tropicais úmidos e polares (1). 
  2. A vida estava concentrada nos lugares onde existiam os elementos necessários: fontes de água, caça, pesca, terra para coletar seus frutos ou plantar (para aquelas etnias que já possuíam o conhecimento agrícola). (2) Embora os vários povos possuíssem entre si uma relação étnica e lingüística, as tribos do norte (aricanos, atacamenhos e diaguitas) apresentavam um estágio diferente dos povos mais ao sul, resultante dos contatos que mantiveram com o Império Inca. Na região austral (extremo sul) existiam diversos outros povos, sobre os quais existe pouca documentação, já que durante a colonização do território chileno o extremo sul foi pouco explorado e conseqüentemente houve produção reduzida de crônicas e relatos dos viajantes e colonizadores. 
  3. Nas províncias meridionais, centro-sul do território chileno, destacam-se três grandes grupos: os Mapuche, os Huillinche e os Serranos (Pehuenche, Puelche e Poyas). Os huillinches tinham costumes funerários e também praticavam o artesanato com cerâmicas, característica de todas as etnias indígenas do Chile. Segundo Ricardo Latcham (3) os huillinches, residentes do sul, fazem parte da mesma raça dos picunches, etnia que viveu no norte do país. O arqueólogo afirma, baseado em provas antropológicas, arqueológicas e também trechos de cartas do conquistador Pedro de Valdivia, que estes dois povos anteriormente eram um só e foram violentamente separados pelo estabelecimento dos mapuche na região num período de mais ou menos duzentos anos antes da chegada dos espanhóis (4). 
  4. Os chamados povos da Cordilheira podem ser considerados a continuação dos povos andinos que residem no norte do Chile e sul do Peru. Trabalhavam a cerâmica, tinham costumes religiosos, caçavam e também coletavam. Pehuenches, puelches e poyas eram nômades, originários dos Pampas, e apesar de terem se adaptado aos costumes dos povos da Região Andina foram detectadas muitas semelhanças com os Tehuelches – etnia encontrada na região da Patagônia (5). Os Pehuenches eram indígenas bravos, de alta estatura, constituíam bandos de caçadores e coletores. Devido ao costume de coletar um tipo de pinhão, denominado pehuén, originou-se o nome desta etnia,pehuenches. Não tinham uma organização central, uniam-se somente quando tinham um interesse em comum. Fixavam-se temporariamente conforme suas necessidades de sobrevivência, principalmente perto dos recursos naturais, mas também quando precisavam combater seus inimigos (6). 
  5. Entre todos os povos nativos que habitavam o atual território do Chile, os mapuche (7) aparecem com maior destaque, primeiro por ser a etnia mais numerosa e segundo porque conseguiu se opor por mais tempo ao processo de colonização. Assentados entre os rios Itata e Toltén, na zona centro-sul, e aparentados lingüisticamente com seus vizinhos os huilliches e pehuenches, os mapuche apresentaram uma feroz resistência à dominação espanhola durante todo o século XVI, chegando ao ponto de expulsarem, por um longo período, os europeus de seu território. A grande rebelião que determinou o surgimento de uma linha de fronteira durou de 1598 até 1602. Estes conflitos foram denominados de “Guerra de Arauco” e prolongaram-se durante a primeira metade do século XVII, diminuindo após a grande rebelião de 1656. A partir daí iniciaram-se as relações fronteiriças entre espanhóis e mapuches, relações que se estenderam até o século XIX. Os contatos de fronteira, intensificação do comércio entre criollos e índios produziram importantes transformações sociais no mundo mapuche levando a sua fragmentação. 
  6. Apesar de se dividirem em várias tribos possuíam uma língua em comum e costumes similares, tendo apenas alguns costumes regionais. Dotados de uma notável unidade cultural e uma grande força defensiva e expansiva, que nem mesmo a dominação espanhola pode submetê-los completamente. Quando da chegada dos europeus, já haviam abandonado o nomadismo há muito tempo, transformando-se em agricultores e criadores de gado. A caça e a pesca também ocupavam importantes espaços em seu modo de vida. Sua alimentação era baseada no consumo de diversos vegetais. Cultivavam, entre outros, madí, quinoa, maíz (milho), feijões e pimentão, coletavam raízes, talos de plantas e sementes. Possuíam rebanhos de lhamas que lhes forneciam lã, carne e couro; caçavam guanacos, pumas, huemules e raposas utilizando-se de arco e flecha (8). 
  7. Os mapuche viviam nos lugares que lhes ofereciam maior quantidade de recursos para sua subsistência. Construíam suas moradias as Rucas (ocas) (9) no ponto mais alto  o terreno para controlar a presença dos inimigos, ao mesmo tempo em que vigiavam seus rebanhos. O lonko ocupava a ruca com as melhores condições. Aruca dos mapuche era uma habitação espaçosa, retangular ou ovulada, feita com troncos e folhas, onde residia a família inteira. A vestimenta, no geral, para os homens era composta por um camisão sem mangas, complementado com o chiripá, que trançavam entre as pernas e prendiam na cintura. As mulheres usavam uma manta como se fosse uma fralda curta e tanto os homens como as mulheres usavam ponchos largos (10).
  8. Na fabricação de seus utensílios usavam diversos materiais, tais como: madeira para fazer bateias, pratos e jarros; com fibras vegetais faziam cordas, redes e cestos; de argila faziam pratos, jarros e panelas, todos com pobre ornamentação ou até mesmo sem nenhuma. Praticamente não trabalhavam o ouro ou a prata; obtinham pouca quantidade destes metais quando comerciavam com alguns povos do norte, utilizando-os para ornamentação pessoal, adornos, ponta de flechas e lanças (11). Este modo de vida inicialmente  provocou espanto no próprio Pedro de Valdivia; em uma de suas cartas ao Imperador Carlos V ele exclama:
  9. Lo que puedo decir con verdad de la bondad de esta tierra es que cuantos vasallos de vuestra Majestad están en ella y han visto la Nueva España dicen ser de mucha más cantidad de gente que la de allá; es todo un pueblo e una sementera y una mina de oro, y si las casas no se ponen unas sobre otras, no pueden caber en ella más de las que tiene; próspera de ganado como la del Perú, con una lana que le arrastra por el suelo; abundosa de todos los mantenimientos los indios para su sustentación así como maíz, papas, quinua, ají y frisoles. La gente es crecida, doméstica y amigable y blanca e de lindos rostros, así hombres como mujeres; vestidos todos de lana a su modo, aunque los vestidos son algo groseros; tienen muy gran temor a los caballos; aman en demasía los hijos e mujeres e las casas, las cuales tienen muy bien hechas y fuertes, con grandes tablazones, y muchas muy grandes, y de a dos, cuatro y ocho puertas; tiénenlas llenas de todo género de comida y lana; tienen muchas y muy polidas vasijas de barro y madera; son grandísimos labradores, y tan grandes bebedores; el derecho de ellos está en las armas, y así las tienen todos en sus casas y muy a punto para de defender de sus vecinos y ofender al que menos puede. Es de muy lindo temple la tierra y que se darán en ella todo género de plantas de España mejor que allá. Esto es lo que hasta ahora hemos reconocido de esta gente.
  10. Acreditamos que um dos principais motivos para a resistência dessa etnia estava na tentativa de manutenção de seu admapu. Segundo a crença mapuche, este costume pode ser entendido como: a interação do índio com a natureza, que deve ser realizada de forma respeitosa; a relação com os espíritos dos antepassados através dos rituais; a organização social respeitando princípios da hierarquia e respeito ao território; os costumes rituais em tempos de guerra. Os principais componentes do admapu eram: a família (que era o alicerce da sociedade), as relações sociais e a religiosidade através da qual eram feitos os rituais. O admapu como forma de organizar a compreensão do mundo mapuche chegou até nossos dias. Analisemos suas características.
  11. No admapu, a terra é uma questão fundamental, sendo entendida como uma doação de Ngünechen para o bem-estar da comunidade. Como explica Parker, “o indígena é o depositário de uma tradição, de uma herança coletiva, que deve proteger, cuidar e desenvolver, para logo passá-la aos seus descendentes, sem considerar a possibilidade de ser proprietário individual dessas terras” (Parker 1995). Assim sendo, no mundo indígena entende-se que a terra é para o uso comum do coletivo (família e comunidade) e a possessão é momentânea (enquanto se é vivo). Então, o problema da terra em questão está mais referido a possessão e usufruto dela do que ao desejo da obtenção da sua propriedade individual, sem desconsiderar seu valor espiritual, sua relação com o sagrado, como valor central na cultura mapuche.
  12. Outro elemento que caracteriza a cultura mapuche é o estilo de relações humanas no interior das comunidades. Essas relações estão mediadas pela linguagem, o que permite um tratamento fraterno e solidário que se expressa através das palavras peñi – lamgen, irmão e irmã, o que gera uma forma de comportamento comunitário e um estilo de moral comunitária. Quer dizer, esse tipo de relações humanas permite inferir a não-existência de classes sociais, pois, como assevera Curivil, entre os mapuche “a regra de ouro é ‘todos somos iguais, todos somos irmãos, todos temos os mesmos direitos com relação à mãe terra’. Nesse sentido, quem ostenta algum tipo de autoridade, chame-se lonko, chame-se machi ou ngenpin, não gera relações de submissão com os membros da comunidade, devido a que o exercício da autoridade está relacionado estreitamente com o serviço” (Curivil, 1995).
  13. Na visão de mundo do povo mapuche, o ser humano considera-se integrado à dinâmica natural, é parte integrante dessa realidade. A natureza e o mundo são sagrados, portanto, o ser humano só pode usufruir dele, respeitosamente. O mundo e tudo o que ele contêm são dádivas divinas de Ngünechen, frente ao que o ser humano é submisso e agradece, contribuindo para a harmonia do cosmos. Para os mapuche existe a convicção de que quem não respeita essa ordem natural, perde a proteção divina e expõe-se ao mal em quaisquer das suas formas. Nessa perspectiva, as pessoas mapuche só podem tomar da natureza o que necessitam dela, cuidando que isso não implique em sua destruição; seu trabalho tampouco deve gerar uma dinâmica destrutiva desse meio, já que isso seria se opor à vontade do Criador.
  14. Para o mapuche , o ser humano vive em função do seu desenvolvimento espiritual, portanto, a satisfação das necessidades materiais não é uma meta, senão um meio que dá as condições para procurar o crescimento espiritual ou, em outras palavras, é parte do caminho, na medida que o limita, oferecendo dádivas e provações espirituais. Decorrente disso, na visão de mundo mapuche, a própria satisfação das necessidades materiais é condicionada pela espiritualidade da pessoa, sendo essa satisfação parte de um processo que também contribuirá para determinar o tipo de processo espiritual de cada ser humano. De qualquer maneira, o bem-estar material não é o objetivo final na vida do mapuche. “O lucro, no mais puro pensamento mapuche, parece ter sido um desvio conceitual, uma desordem e um atentado que prejudicam a convivência humana, pois produzem desnivelamentos sociais que conduzem à inveja e à vingança ou fillad kawün” (Alcamán e Araya 1993).
  15. Na atualidade é possivel afirmar que a situação das comunidades mapuche, em geral, é crítica, isso principalmente como consequência da assimilação e imposição de elementos de fora da sua cultura. Tudo começou com a implantação de um estilo de vida distinto, um comportamento distinto e uma concepção de mundo distinta; primeiro por parte do Estado chileno, logo pelas igrejas e seitas religiosas. No caso da igreja cristã, com a criação de escolas formais introduziu-se uma crença distinta, mudando não só a forma de conceber o Grande Espírito, a mãe natureza e o próprio mapuche, senão que mudando também a forma de entender, de compartilhar e de viver o mundo mapuche. Implanta-se uma super-estrutura organizacional ocidental e com isso, os conceitos de autoridade e de ordenamento social ocidental.
  16. Desse modo, as igrejas, as seitas religiosas, as escolas formais ou sistemáticas e o sistema de ordenamento e organização social promovidos pelo Estado chileno são, hoje, os grandes elementos que tendem a destruir o mundo mapuche.



0 comentários: