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Carta aos pais e responsáveis

Posted by Parcos Maulo Marcadores: ,


Aos senhores pais e responsáveis, saúde!

Tenho uma amiga que realizou um sonho de infância não faz muito tempo. O sonho dela era conhecer Machu-Pichu, no Peru. E, para tornar a viagem ainda mais interessante ela resolveu ir de “mochilão”. O que significa? Ela encheu uma grande mochila de viagem com tudo e mais um pouco e, na companhia de confiáveis amigos e amigas, encarou as estradas de São Paulo a Cusco com muita intrepidez. Ela me disse que o trajeto teve seus “altos e baixos”, não só literalmente (afinal, estavam escalando a Cordilheira dos Andes!), como também em desentendimentos. Mas as tais discussões não foram suficientes para inviabilizar o passeio. Apesar de tudo, a amizade acabava por introduzir novamente a sensatez no grupo. Depois de quinze dias de viagem, tão emocionantes quanto o próprio desfecho, estavam todos eles na lendária cidade perdida e puderam sentir na pele a história multissecular do povo do Império do Sol...

Por que estou a lhes contar isso? Já explico. Nunca fui até Machu-Pichu. Se quisesse ir, tomaria conselhos com essa minha amiga: qual o melhor caminho? Que pontos turísticos vale a pena visitar? Quais hotéis devo procurar? Quais são as trilhas perigosas as quais devo evitar? Respostas que ela, uma pessoa que já esteve lá, poderia me dar. Respostas que tornariam minha viagem mais segura e prazerosa. Ela poderia me fornecer um roteiro de viagem. Ser-me-ia como uma “professora de chegar até Machu-Pichu”. Ela já esteve lá.

Um professor é, basicamente, alguém que “já esteve lá”. Uma pessoa que se apaixonou por determinado assunto e concordou consigo mesmo um “mochilão” que o levasse até onde sua própria paixão fosse capaz de carregá-lo. Mas, sabemos, nas Cordilheiras do Conhecimento existem inúmeras rotas e cidades perdidas a serem re-descobertas por cada explorador-sonhador, por cada professor. Algumas dessas cidades possuem nomes engraçados, como, na Cordilheira da Matemática, os montes Equações Diferenciais; ou ainda, nos profundos Vales da História, os tenebrosos lagos Primeira e Segunda Guerra Mundial. O fato é que até pode se acabar a paixão que nos arrasta a permanecer seguindo a aventura, o que não se acaba é o caminho para quem quer continuar. Mas essa é outra estória. Voltemos à descrição do professor como alguém que “já esteve lá”. Como minha amiga, que poderia me propor um roteiro de viagem para Machu-Pichu, o professor pode propor roteiros de viagem àqueles que queiram se aventurar pelas regiões das Cordilheiras do Conhecimento as quais ele mesmo já visitou. Imaginem só, se no lugar de alunos, nós tivéssemos aventureiros!

Sabem o que significa a palavra “aluno”? Vem do latim a-lumnis, ou seja, “sem luz”. Uma pessoa que não possui luz própria e por isso mesmo precisa ser “iluminada” por outrem. Nós, aqui na Escola, estamos cada vez mais convencidos de que o termo “aluno” não é uma boa palavra para nomear essas crianças... Quando a gente para pra ouvi-las, conversar mesmo, perguntar se estão interessadas em conhecer algumas regiões pouco exploradas das Cordilheiras do Conhecimento, ficamos sobressaltados com o quanto de luz emana de seus olhinhos vivos e espertos. Elas têm luz própria... Se têm! Daí nós, professores e coordenação, pessoas que já estiveram lá nalgumas áreas do grande trajeto do Saber, pensamos, pensamos e pensamos mais um pouco. Trocamos conselhos, ouvimos os pequenos aventureiros e acabamos por perceber que a Escola precisava crescer para se tornar um pouso de viagem, um local para projetarmos excursões pelas desafiadoras Cordilheiras do Conhecimento. E por isso, hoje, os senhores e senhoras têm esta carta em mãos. Para inteirá-los de que tentaremos construir um espaço que seja minimamente digno do espírito de aventura, do ímpeto pelo saber que anima o coração de seus filhos e filhas. Mas este é o ponto em que o desafio se alarga e alcança até mesmo os professores que “já estiveram lá”. Pois, para criar esse ambiente de liberdade responsável onde o aprender é, de fato, uma aventura e uma brincadeira, nós, os professores e a coordenação, precisamos desafiar nossas próprias ideias fixas do que seja a educação. E mais, o desafio também alcança aos senhores pais... Como?

Pois bem, quais são as memórias de seu tempo de criança que lhes vêm à mente quando ouvem a palavra “PROVA”? Hoje em dia temos um eufemismo para esse termo, “Avaliação de aprendizagem”. Ainda assim continua sendo a mesma velha prova estressante e ineficaz. Vocês, que conhecem os aventureiros que têm, sabem que uma simples folha de papel cravada de algumas perguntas concernentes a um conteúdo memorizado durante dois meses não é suficiente para dar conta de toda a capacidade, inteligência, ousadia e criatividade desses pequenos. Reconhecemos isso também. Então, o que podemos fazer? Esperem, esperem! E quando falamos em restritivas salas de aula? A necessidade de os alunos ficarem presos sentados olhando para frente em silêncio durante horas seguidas dentro de salas pequenas e em carteiras pouco confortáveis? Quem poderá romper seus próprios limites e galgar os píncaros das Cordilheiras do Conhecimento se o tédio e a apatia são os companheiros indeléveis das aulas expositivas lotadas de um conteúdo asfixiante? Diante desse quadro nós nos pusemos a pensar e pesquisar mais um pouco e, perguntem aos seus filhos, a ouvi-los em suas demandas.

Duas propostas foram aventadas pelo pessoal. Primeiro, reestruturar o espaço e o tempo da sala de aula. Segundo, repensar a avaliação escolar. Para tanto, utilizamos como ponto de partida dessa reflexão os modelos escolares colocados em prática tanto na Escola da Ponte, em Portugal, como também na escola municipal paulistana Desembargador Amorim Lima. Ambas são exemplos de projetos de transformação que conseguiram fazer do processo educativo uma verdadeira aventura prazerosa e desafiadora. Concluímos que a experiência não é apenas possível como também deliciosamente apaixonante. E se não houvesse a obrigatoriedade da permanência em sala de aula? E se, ao invés de o professor ocupar o protagonismo no processo de educação – falando, falando, falando e falando lá na frente da sala, sozinho e sem tempo para ouvir de fato o que tem a dizer os pequenos –, o professor fosse um parceiro, um tutor, um guia de viagem que propusesse roteiros e acompanhasse os aventureiros em suas buscas pessoais? Imaginem se os aprendizes tivessem a liberdade de não só responder textualmente uma questão, mas, se assim decidissem, dar corpo ao saber por meio de seus próprios desenhos, de um filme realizado e editado por eles mesmos ou, ainda, escrevendo e realizando um teatro que desse conta daquilo que foi aprendido? Regras de português sendo aprendidas na necessidade de se publicar um bom texto sobre cidadania no jornal do colégio, matemática sendo identificada em seus usos sociais na vida cotidiana, história sendo evocada nos acontecimentos políticos de nossos noticiários presentes, ciências estudada nos jardins de casa e da Escola... Parece utopia? Creiam, não o é! A experiência tem dado certo nas escolas que ousam aventurar-se.


Assim sendo, as crianças de nossa Escola terão acesso ao pátio, ao galpão, à biblioteca, a sala de informática para, sozinhas ou em grupo, poderem realizar seus roteiros de estudo. Os professores serão coadjuvantes no aprendizado delas, pois, as crianças serão autoras dos próprios pensamentos. Não mais a obrigatoriedade de permanecer caladas, sentadas e em silêncio. Ninguém realiza uma aventura desse modo! A essência da aventura está no movimento, no erguer-se e ir. Mas, como já dissemos, as crianças não irão sem eira nem beira. Para poderem se aventurar nas tais Cordilheiras do Conhecimento com o mínimo de perigo (a aventura do Saber sempre carrega consigo algo de perigo, de crise, de desafio), estamos nós aqui, os professores e a coordenação, para fornecer a eles roteiros de viagem. E para acompanhá-los, também, no cumprimento desses mesmos roteiros. Assim os muros da escola ruem aos poucos e a aventura do aprendizado continua em casa. Será aí que os senhores pais entrarão, também, como coadjuvantes nas trajetórias de seus filhos. Podem contar conosco aqui da Escola e nós, igualmente, contamos com vocês.

“Mas e a prova?” Devem estar se perguntando. A prova do conhecimento estará nas pegadas que as crianças deixarão ao se aventurar. Essas pegadas estarão reunidas num portfólio individual que será composto por toda a produção bimestral das crianças, sejam textos, fotos, gravuras, músicas, poemas, vídeos... Os meios de aprendizado estarão limitados somente pela criatividade de cada aventureiro, respeitado em suas particularidades. Esse portfólio será analisado por cada professor para que a nota final seja definida. Mas não só pelo professor! Gostaríamos que os senhores pais também tomassem parte na avaliação. A simples pergunta, endereçada à criança, “você está feliz na escola?” abrirá um canal de trocas riquíssimo que, certamente, nos auxiliará na construção de uma escola cada vez mais democrática e feliz. E quanto aos esforços de pesquisa e estudo que as crianças têm realizado em suas casas para comporem seus roteiros? Gostaríamos do parecer dos senhores nesse quesito também. E, por que não, o que os senhores pais têm aprendido com seus respectivos aventureiros? O processo de educação nunca é um caminho de mão única. Todos aqueles que estão envolvidos nele, não apenas as crianças, aprendem coisas fantásticas e maravilhosas, coisas desafiadoras que nos fazem querer melhorar como pessoas sempre. 


E então, vamos embarcar juntos com as crianças nessa aventura? Tentar criar uma Escola diferente? Se depender delas, a aventura já começou!


Amigavelmente, Marcos Paulo de Melo Ramos.



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